Lavoura Arcaica, Raduan Nassar

"... não se questiona na aresta de um instante o destino dos nossos passos..." (p. 103)
Raduan Nassar é um caso atípico no panorama literário, ao assumir que a sua mensagem se resume as três obras que publicou na década de 70, não voltando a publicar. Em 2016, ganhou o Prémio Camões o que trouxe de novo a sua obra para o centro das atenções e foi o mote para a minha leitura.
A impressão que trespassou toda a minha leitura é a de que há imensas referências que não consigo apreender. Não que isso dificulte a leitura do livro, mas sim que este tem inúmeras releituras a oferecer. Muitas dessas referências são bíblicas, como a Parábola do Filho Pródigo. André. Desde sempre se percebe como ovelha tresmalhada, que não se identifica, nem adapta à dinâmica e valores familiares impostos pelo pai.
Lavoura arcaica: toda e qualquer forma do homem procurar alterar a ordem da natureza. Ou o trabalho a que adão e eva se viram obrigados como punição por romperem a ordem estabelecida por Deus pai, votando toda a humanidade a uma culpa irredimível.
Culpa. Será culpa de André o amor natural que sente por Ana, sua irmã, e que sabe inaceitável na ordem estabelecida. Para proteger essa mesma ordem, decidir partir. Mas a ordem familiar não se conforma com a partida e exige o seu regresso, como se este viesse confirmar a inalteração da ordem. Mas Tudo se alterou. Para sempre. Pois se a sua presença sempre foi incompreendida, a sua saída colocou a semente da dúvida e esta germina já em vários membros familiares: Ana, Pedro e Lula, o caçula.
O regresso dá-se. Mas as verdadeiras razões da partida são impronunciáveis e, como tal, incompreensíveis. E o retorno só veio confirmar que já não passado ao qual regressar. E que o futuro só ser depois de todos os alicerces caírem por terra. E quem os derruba é o patriarca, incapaz de cumprir a sua própria palavra de união.
Este livro tem tanto a dizer, que parecem faltar as palavras. Nesta edição, é acompanhado por um posfácio de Sabrina Sedlmayer, cuja leitura recomendo vivamente, pois oferece elucidativas pistas de compreensão para o texto, enriquecendo a nossa leitura.

Editora: Relógio d’Água | Local: Lisboa | Edição/Ano: 1ª, Outubro 1999 | Impressão: Arco-ìris | Págs.: 2014 | Capa: Fernando Mateus, sobre pintura de Mark Rothko | ISBN: 972-708-548-2 | DL: 143119/99 | Localização: DR5072383 (0322708)

Comentários

  1. Excelente comentario. Deu-me luz para algumas interrogações. O livro é denso mas tão rico. Abraço! F. Faria

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    1. Caro Fernando, que saudades das nossas tertúlias. Obrigada pelas palavras. Calculo que amanhã o debate seja caloroso. Abraço a todos... e que cheguem (ou não) a conclusões frutíferas. :)

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