Nada, Carmen Laforet (Parte II: Uma história de emancipação)


Não tenho por hábito escrever dois textos sobre o mesmo livro, o que significa que o que aqui registo deixa de fora muitas outras impressões que talvez até fossem mais interessantes. Tal deve-se ao facto que termino as minhas leituras quase sempre em vésperas ou no próprio dia em que tenho necessidade da sua utilização, o que provoca – não raras vezes – impressões superficiais, seja por incapacidade, seja por não permitir que as mesmas assentem e se solidifiquem ou até por impossibilitar que outras emerjam, sobrepostas por novas leituras.
No caso deste Nada, deu-se um hiato raro e considerável entre o momento da leitura e o da sua utilização. Não retiro nenhuma palavra ao primeiro texto, mas este hiato possibilitou a emersão de outra percepção: a de que este livro nos oferece diversas perspetivas sobre a emancipação feminina.
Recapitulando, esta história situa-se em Barcelona na década de ’40 e relata-nos o acolhimento, durante um ano, de uma jovem estudante universitária junto da sua pouco hospitalar e disponível família materna. Andrea rodeia-se assim pela avó - cujo nome nunca é desvendado, pela tia Angustias, por Glória - tia por afinidade, e por Ena, amiga de faculdade, e sua mãe.
Mas que particularidades tornam esta uma história de emancipação feminina? Vejamos, personagem a personagem:
  • Andrea, jovem órfã, e peso em qualquer economia familiar, é enviada para Barcelona para frequentar a faculdade, uma possibilidade que desde já a afasta do comum trajecto das mulheres da família, provocando estranhamento e invejas mal disfarçadas, porque a colocará num nível de opções que que nenhuma outra teve acesso. Spoiler alert: Tem a possibilidade de iniciar um namoro com casamento financeiramente estável à vista, que declina. No final, tem acesso a um trabalho que lhe dá a almejada autonomia financeira.
  • A angustiante Angústias faz jus ao nome. Sempre presa entre as convenções sociais e a responsabilidade financeira pela família, sente-se sempre desautorizada e desvalorizada entre o papel de provedora e de mulher que em prol das convenções abdica da relação que sempre desejou com o seu patrão, por sua vez casado. Como último reduto, e única opção de fazer valer a sua vontade e o seu valor, para si própria e ciente de que ninguém alguma vez o expressará, ingressa num convento, deixando a família ainda mais depauperada.
  • A inglória Glória é uma jovem mãe de uma criança doentiça. Casada com Juan, artista de pouco valor que sempre vivei à sombra do seu irmão Ramon, com quem combateu na Guerra Cívil espanhola em lados opostos. Glória é mais um elemento de discórdia entre os seus irmãos, dados os seus atributos atrativos e às ausências injustificadas, que servem para acirrar o ciume e a violência doméstica de que é vítima. Spoiler alert: descobre-se que Glória, com as suas misteriosas saídas – afinal para jogar cartas e ganhar algum dinheiro – é a mais improvável provedora da família e quem garante que a fome não se instala de vez naquela casa da Rua de Aribau. O que não a livra por completo da violência mas amaia um pouco.
  • A avó é uma figura terna e conciliadora que procura amainar os espíritos e evitar contendas. No entanto é desprezada pelas filhas, que a consideram culpada pelo caos em que a família se encontra devido ao modo diferenciado como educou rapazes e raparigas. É o exemplo de que – infelizmente – a desigualdade entre géneros começa educação que recebemos em casa e pelas mãos de quem não deveria, mas que – na melhor da hipóteses – não tem capacidade ou consciência de que está a perpetuar uma educação e diferenciação machista e paternalista. Quase em final de vida, esta senhora tenta - nas suas parcas possibilidades – minimizar qualquer atrito entre os demais.
  • Ena e sua mãe são o exemplo da autonomia e emancipação possíveis, quando a questão financeira está assegurada. São o exemplo que Andrea tem da outra face da moeda, embora ainda lhe reste assegurar as moedas para o seu sustento.
Haveria ainda tanto para dizer e, no entanto, já vai longo este texto. Quem sabe, um destes dias, ainda deixou aqui outra reflexão suscitada pelo livro ou não… nunca se sabe...

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