Rapariga com brinco de Pérola, Tracy Chevalier

Há vários anos vi o filme homónimo protagonizado por uma muito jovem Scarlett Johanssen e por Colin Firth, um dos meus actores de eleição (já não recordo se não foi por ele que quis ver o filme). Recordo pouco do mesmo, a não ser a sua fotografia, da responsabilidade do português Eduardo Serra, que replicava a famosa luz dos quadros de Vermeer. Lembro sobretudo como que a composição do quadro, o modo como o pintor chegou àquela pose e ao famoso brinco coo factor de distinção. Fui neste contexto que cheguei a esta leitura, que integra o programa desta temporada da Comunidade de Leitores da Biblioteca Palácio Galveias dedicada à pintura.

A história dá-nos a conhecer Griet, uma jovem de 16/17 anos, que se vê obrigada a ser criada na casa de Vermeer. É pela sua perspectiva que conhecemos a família do pintor, o seu método de pintura e algumas das práticas das época, mas também um pouco da organização social. É verdade que a autora não se detém em grandes detalhes, mas tece um um bom quadro expressionista sobre a época e o local.

A minha leitura oscilava entre o prazer pelo modo como a autora tece a sua trama e desenvolve a sua premissa e um desconforto que demorei a identificar, exatamente por não conseguir apontar nenhuma imprecisão de construção. Talvez gostasse de ter certos momentos mais aprofundados, mas não sei se isso coadunaria com a perspectiva de Griet, protagonista e narradora. Como digo demorei a perceber exactamente a razão do meu incómodo. Primeiro, tive de perceber que este não é tanto sobre Vermeer. Ele tem um papel relevante, mas é sobretudo um personagem ausente, seja porque está a pintura, seja porque conduz a sua “associação profissional”. É sobre a sua ausência e silenciosa presença que v se constrói a vivência de diversas mulheres: a esposa, a sogra, as filhas, a criada Taneke e agora Griet, além de ocasionais modelos. O que acabamos por ter retratado é essa mesma domesticidade que os seus quadros nos apresentam e que se torna característica da pintura flamenga.

E aqui começamos a chegar à razão do meu incómodo. É que este livro é lido pelos olhos de uma mulher, em 2021, que gozou e goza de diversas escolhas na sua vida. Que teve a possibilidade de definir parte considerável do seu rumo e que embora nem sempre fique tranquila com o resultado das suas escolhas, tem as ao seu dispor. Ora, as mulheres aqui retratadas não têm a mesma possibilidade quanto ao seu presente, quanto mais ao seu futuro. O seu grau de consciência, de aceitação e até de margem de escolha difere de personagem para personagem e é em Griet que temos o expoente de que apesar de certas oportunidades existirem, não estão acessíveis a todas da mesma forma. A Griet é possibilitado através da pintura entrar num novo mundo. Mas esse mesmo mundo é lhe negado. A sua escolha é feita em consciência, mas é sobretudo uma falta de escolha que o seu estatuto de mulher, sem independência financeira e sem formas de a ter, em pleno século 17. E aqui jaz o meu desconforto, um desconforto pelas Griets deste mundo, sempre criadas de outrem, sempre servas de outras demandas, e que raramente têm um vislumbre do mundo para além de país, amos, patrões, maridos e posteriormente filhos. Griets que ainda perduram e perdurarão ao nosso redor.

Título Original: Girl with a pearl earing | Tradução: Ana Falcão Bastos | Editora: Temas & Debates | Colecção: Algibeira | Local: Porto | Edição/Ano: 2ª, jun 2002 | Impressão: Gráf. Manuel Barbosa & Filhos, Lda. | Págs.: 197 | ISBN: 972-759-528-6 | DL: 179305/02 | Localização: BLX PG 82-31/CHE (00453183)

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